O fim da espera

Uma história sobre doação de órgãos

Quem conversa com a Regiane (46 anos), que ri e faz piada de tudo enquanto divide sua história, pensa que o sofrimento passa longe. Um dos olhos, um pouco mais fechado em relação ao outro, acusando a falta da visão, é o único indício de qualquer problema.

Entre espaçados goles de uma xícara de capuccino, provavelmente já frio há meia hora, ela conta a história de uma vida salva por uma doação. Ou melhor, duas doações – uma de rim e outra de pâncreas.

Numa segunda-feira de madrugada, alguém anunciou o fim da espera

Depois de três anos e meio na fila para receber o transplante dos dois órgãos, o telefone tocou. 

“Vem correndo para o Hospital do Rim”

Disse a voz do outro lado. Regiane rompeu a noite, na madrugada da cidade de São Paulo, em busca de uma chance.

“Você fica naquela ânsia por melhorar, por viver”

Mas não foi daquela vez.

A cada órgão que fica disponível para uma doação, o hospital chama três pessoas da fila de espera. Se os exames pré-operatórios indicarem que o primeiro da fila não está bem para enfrentar o processo, é a vez do segundo, evitando a perda do órgão.

Naquele dia, Regiane não era a primeira, e sim uma moça chamada Renata, como ela nunca vai esquecer. Renata já havia sido a primeira várias vezes, mas nunca estava bem para ser operada. 

Quando, naquela noite, a resposta dos exames da Renata foi positiva, Regiane comemorou. Olhou-a nos olhos e disse:

“Não estou triste, estou feliz por você, porque hoje vai dar certo”

Renata retribuiu a solidariedade e disse à Regiane que logo seria a vez dela. E foi mesmo.

A sexta 13 deu sorte

Na próxima sexta, 13 de agosto, o telefone tocou novamente. O irmão de Regiane, um dos maiores companheiros da jornada da espera pelos órgãos, não economizou fôlego. 

“Baixinha, baixinha! Desliga a máquina e vamos para o hospital, porque agora você é a primeira!”

Ele se referia à máquina de diálise, que toda noite fazia a filtragem que o rim já não dava conta, através de uma mangueira conectada a um catéter em sua barriga. 

Debilitada pelo trabalho não realizado pelos órgãos doentes e pela longa espera, Regiane se despediu de sua companheira de todas as noites e foi para o hospital,

“nossa senhora, com sede ao pote”

Minutos antes da cirurgia, a equipe médica e os familiares pareciam tensos, e a paciente sentia a necessidade de tranquilizar a todos. 

“Iiih, gente, relaxa, daqui a pouco estou aí, se não fui antes, agora é que não vou”

E oportunidades para ir embora não faltaram mesmo

Em toda a trajetória, porém, Regiane carregava consigo uma certeza de origem desconhecida: sobreviveria até os órgãos chegarem.  

Nos últimos meses antes do transplante, esteve na UTI por três ou quatro vezes. Em uma delas, os médicos chegaram a liberar toda a família para entrar no quarto, fazendo surgir a suspeita de um destino já traçado contra a paciente. Até naquele momento, ela fez piada da situação. 

Naquela época, Regiane tinha 23 anos. Seu corpo, no entanto, começara a dar sinais de que algo não corria bem muito antes, aos oito anos de idade, quando perdeu a mãe para a leucemia.

Seu organismo sofreu com a perda, e ainda hoje ela tem certeza de que o emocional afetado contribuiu para o surgimento da Diabetes tipo 1 naquela idade.

O pai trabalhava o dia todo. Ela e o irmão ficavam aos cuidados da empregada, e nenhum dos três tinha o conhecimento necessário para oferecer à Regiane uma alimentação saudável, ninguém nunca soube dizer que algo não podia. Pouco tempo depois, surgiu a doença. 

A culpa pelo agravamento do quadro, acredita Regiane, foi dela também. Na adolescência, não se cuidou. Saía com os amigos, comia coisas que alguém com Diabetes não poderia comer, ingeria bebidas alcoólicas com uma frequência maior do que seu corpo poderia suportar. 

Assim, ao entrar na casa dos 20, a calamidade foi tomando conta dela dolorosamente, de dentro para fora.  

Primeiro, o rim entrou em falência. Depois, a visão também começou a ser prejudicada. Já em estado de alerta, decidiu procurar ajuda, e os médicos anunciaram a necessidade da doação de um rim e um pâncreas, porque os dela já não ajudavam seu corpo a viver. 

No hospital, a inscreveram na longa fila de espera para doação de órgãos. 

Enquanto o doador não aparecia, a única saída possível para sobreviver era a diálise peritoneal. Após uma cirurgia com anestesia local, quatro vezes por dia, Regiane aquecia uma bolsa com um líquido para ser introduzido no catéter e fazer a filtragem no lugar dos rins.  

Até que, finalmente, o governo concedeu uma máquina capaz de realizar a filtragem durante a noite.

Mesmo assim, com o tempo, o rim foi parando de vez. A Diabetes ficava cada vez mais difícil de controlar, e a glicose do líquido da diálise não ajudava. 

Ela ainda se lembra de quando entrou no site do governo que fornece informações sobre a posição na fila de espera para doação e apenas seis pessoas estavam na frente.

Essa é a pior parte, porque a fila parece nunca andar. É aprisionante a rotina de, todos os dias, entrar no site para conferir.

Por isso, quando o telefone tocou naquela madrugada, a esperança ia além de melhorar a saúde. Era uma libertação.

Atestado de liberdade

Naquele dia 13 de agosto, 19 anos atrás, Regiane recebeu os dois órgãos e também um atestado de liberdade. Assustou-se ao acordar por estar toda entubada, mas, três dias depois, já foi da UTI para um quarto. 

Lembra-se de quando, após tirar todos os tubos, foi ao banheiro. Deu um grito.

A enfermeira, assustada, correu até lá. “Menina, o que aconteceu?” Sorrindo como uma criança ao ganhar o brinquedo dos sonhos, Regiane respondeu que estava fazendo xixi, coisa que já não fazia há três anos e meio. 

Esse jeito brejeiro, junto com a estabilidade emocional, sempre foi importante para o tratamento, como dizia a própria médica responsável.

É claro que o sofrimento existiu, admite ela, mas nunca a dominou. Não é difícil de acreditar. Regiane está sempre rindo, falando alto, é difícil imaginá-la reclamando de alguma coisa. 

A única coisa que dói, conta, é não enxergar direito as pessoas amadas. Se entristece ao não reconhecer alguém andando por aí, com os seus 30% de visão. Nada tira dela, porém, a gratidão ao doador.

O doador

O médico esqueceu, por acidente, a ficha do doador em cima da mesa, permitindo um breve vislumbre. Regiane se chocou ao descobrir a idade: apenas 13 anos. Uma criança, constatou, salvara sua vida.  

A única forma possível de alguém ser doador de órgãos no Brasil é manifestar o desejo à família em vida, pois somente ela pode autorizar a doação. No caso de uma criança, quem decide são os familiares.

E a família de alguém bem no começo da vida, percebia Regiane, dera a ela uma chance de envelhecer.

Refletindo, concluiu que o mundo precisa de mais pessoas assim, dispostas a fazer doações. Doações de tempo, de afeto, doações de órgãos também.  

E hoje, Regiane nos doa sua história, com a alegria juvenil de quem recebeu o maior presente que alguém pode dar: a vida.

Sobre a doação de órgãos no Brasil

O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro ocupa a primeira posição nos transplantes feitos mundialmente. 87% dos transplantes são feitos com recursos públicos, de acordo com o Ministério da Saúde.

Existem dois tipos de doadores:

1. Doadores vivos

Podem doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte do pulmão, desde que isso não prejudique sua saúde. Legalmente, é permitido doar para parentes até 4º grau. Para não parentes, deve-se conseguir uma autorização judicial.

2. Doadores falecidos

É quando acontece o diagnóstico de morte encefálica – o encéfalo para de funcionar, mas a respiração e os batimentos cardíacos são mantidos por meio de aparelhos.

O Conselho Federal de Medicina regulamenta esse diagnóstico, definindo que dois médicos diferentes devem examinar o paciente, além da realização de um exame complementar, interpretado por um terceiro médico.

Segundo dados mais recentes da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), mais de mil 57 pessoas estão na fila de espera para doação de órgãos. 

A recusa familiar ainda é o principal empecilho para reduzir essa quantidade. 

Escrito por Nathália Galvão
5 de fevereiro de 2024 às 10h57
Doação de órgãos,

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