Higienópolis, terra dos contrários

Ah, as arborizadas ruas de Higienópolis! A sombra que se estende sob a larga avenida encobre os corredores matinais arfantes e os tutores que caminham com seus cães logo pela manhã, debaixo de sol ou chuva.

As diversas opções na calçada sopram convites. Convites de entrar e apreciar um café, ouvindo música clássica ou lendo poesia, respirando os ares da “cidade da higiene”, um dos primeiros bairros da capital a ter o privilégio do saneamento básico.

Mas, na porta do estabelecimento, ouvem-se também pedidos, por alguns trocados ou até pelo café da manhã. Alguns desses nômades aprenderam a usar a criatividade para não serem “apenas mais um”, apenas mais um pedido negado ou causador de um sorriso amarelo pedindo desculpas. Eles aprenderam a contar suas histórias, usando suas narrativas pessoais para justificar a abordagem.

Homem com placa dizendo “Ajude-me se puder no alimento”, na calçada da Av. Higienópolis

Outras vozes sibilam avisos. Andar com o celular na mão é como acenar para a famosa gangue de bicicletas, veículos de onde velozmente saem mãos para surrupiar os aparelhos, antes que você perceba e sem que possa fazer algo a respeito. Crime organizado temido pelos jovens que saem para estudar e pelas senhoras que vão à feira às quintas.

Notável é o clube italiano. E tem o café presente somente nas cidades seletas do mundo, dissipando o delicioso aroma de pão quente pela varanda. Caminhando mais um pouco, é possível mergulhar no entrelaçamento dividido das culturas, ao ver os judeus caminhando aos grupos pelas ruas.

Alguns pensamentos vêm zunindo, rasgando o fundo dos ouvidos. Algo parece não se acomodar, parece errado. Quente e frio, branco e preto, feliz e triste. Um desacorde no ápice da melodia. Tudo junto, lutando para se acomodar nesse mundo confuso.

Higienópolis é um bairro bonito, com condomínios vistosos, um belo shopping logo ali, próximo das residências, opções gastronômicas diversificadas. Tem a praça onde as crianças brincam, agarradas com suas famílias e babás nos fins de semana, sem notar os opostos debaixo do céu sobre suas cabeças penteadas.

Muita beleza, famosa e requintada, no coração da cidade de São Paulo. Beleza manchada, respingada pelos cobertores nas calçadas. Nas calçadas do shopping, da igreja, dos bistrôs e da universidade. Construções de madeira ameaçando quebrar, de onde às vezes saem vultos preparados para mais um dia de pedidos negados e concedidos. Ali mesmo, pertinho dos ilustres prédios da arquitetura moderna paulista.

Tem sempre alguém apressado, caminhando mais rápido que os próprios pés para o trabalho. E tem sempre alguém parado, folheando um livro na banca da esquina, como se os segundos existissem apenas no campo das ideias.

O cheiro de chuva é sempre marcante ali, na cidade da garoa. Mas, vez ou outra, ele é temperado com fumaça de cigarro, incenso das lojinhas esotéricas, cerveja das cadeiras de bar espalhadas porta afora e churrasco do rodízio sofisticado na Avenida Angélica.

Higienópolis é um pequeno retrato, de uma terra em que pisam todos os tipos de pés. De um ar que todos respiram, uma rua em que todos podem morar – abrigados ou não –, onde todas as crenças coexistem. Tudo isso, quase sempre, sem conversa. Ou com palavras ansiosamente trocadas, para que o desconforto logo tenha fim. Higienópolis é a terra dos contrários e dos encontros desencontrados.

Escrito por Nathália Galvão
6 de outubro de 2020 às 12h03
#Crônica, #Higienópolis, #Jornalismo

Últimos textos