Além das abotoaduras

Um perfil do maestro Victor Hugo Toro, regente titular da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas (OSMC)

Foto: Jéssica Moraes

Quando todos os músicos já estão posicionados no palco, Victor Hugo Toro, regente titular da Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas (OSMC) desde 2011, caminha a passos largos e apressados atrás das coxias. Ele sacode a batuta de forma quase feroz, como se a intensidade do movimento fosse capaz de garantir o sucesso da apresentação. Agora, é o clímax de seu sofrimento. Por mais que a experiência lhe traga à memória os aplausos ao final, é como se tudo estivesse apagado. “Toda semana, antes dos concertos, eu me pergunto por que escolhi ser maestro”, diz, tentando incluir na entonação a angústia vivida no momento.

No palco, Victor cuida para que a sinfonia faça jus à interpretação desejada pelo compositor e, para isso, o maestro encarna em sua pele todas as emoções envolvidas na composição. Não é simplesmente transmitir alegria ou tristeza, afirma. Afinal, “o que era alegria naquela época?”. A fidelidade aparece até mesmo em sua forma de se vestir. Victor sempre escolhe a cor de suas abotoaduras de acordo com os sentimentos presentes na peça. Se for mais calma, um branco, azul. Já se for mais intensa, até o entorno de seus punhos precisa alcançar essa temperatura, com cor vermelha, alaranjada.

O maestro é intenso. Tudo em sua voz e em seus gestos expansivos se traduz em uma cativante expressividade cênica. Por onde passa, não é capaz de não ser notado. Sua voz grave e o sotaque chileno captam a atenção dos ouvidos mais distantes. Seus gestos levam a crer que, a qualquer momento, vai começar a recitar um texto teatral. Não por acaso, quando criança, Victor sonhava em ser ator. Não pensava em ser maestro, muito menos em ser músico. Com a única certeza de que queria imergir no meio artístico, estudava teatro e nessa paixão apostava todas as suas fichas.

Em Santiago, no Chile, sua infância era agitada 

Victor respirava arte, ia ao cinema, a peças teatrais, assistia a balés. “Meus pais sempre fizeram questão de que eu vivesse muitas cosas, de que fizesse mais do que apenas ficar fechado em casa estudando”, conta o maestro, com seu português misturado ao espanhol. Os pais, uma dona de casa e um motorista, que ainda hoje vivem no Chile, sempre apoiaram os sonhos do filho.

“Eu nunca tive dificuldades de me expressar à frente de um grande público, me sentia perfeitamente à vontade nos palcos”. Essas características faziam-no crer que não havia dúvidas, ele seria um grande ator. Encantava-se, principalmente, com a capacidade de as peças teatrais emocionarem o público. Ele desejava, ardentemente – porque não existem meios termos em sua visão de mundo -, que as pessoas não conseguissem resistir aos encantos das histórias.

Seu contato com a música teve início porque, quando criança, ele tinha o hábito de espalhar as panelas da mãe e usá-las como percussão. A mãe, assim, levou-o a um conservatório musical para que estudasse. As partituras também tinham sua forma de conquistar a atenção de Victor, mas predominava o desejo de ser ator. “Yo tinha todo o porte, a expressividade cênica”, afirma

A peça, no entanto, chegou a um segundo ato quando, para um trabalho de escola, alguns dos colegas de Victor, totalmente inexperientes com o teatro, montaram uma peça em que quatro poetas encontravam-se na morte. Um dos integrantes do grupo era mais tímido, inexpressivo, “más silencioso”, conta Victor. Durante a apresentação, entretanto, todo o silêncio e as mais profundas expressões aplacadas libertaram-se. Victor não se esquece. O momento retratado na peça passava-se na Guerra Civil Espanhola. Havia uma bandeira comunista, uma dramática música no fundo, um contexto repleto de angústia e fortes emoções. O garoto tímido e inexperiente que ali estava representava o poeta Frederico Garcia Lorca, morto na guerra, com uma “interpretação tan intensa, tan dramática”, gerando uma esfuziante energia no palco.

Por um momento, Victor foi atingido por um sentimento devastador. “Eu tinha todas as cosas exteriores, mas havia una cosa natural que ele tinha de expressar que eu não tinha”, conta, admitindo que esta é a primeira vez em que coloca em palavras a história guardada há anos em sua memória. Para ele, é difícil falar sobre si. Deu-se conta, naquele momento de sua infância, de que teria de trabalhar muito para alcançar um ideal que o amigo atingia com naturalidade.

Mais tarde, descobriu-se com essa mesma naturalidade para a música

 “No fundo, também escolhi a parte mais teatral da música”, conclui. A escolha de ser maestro, entretanto, não foi tanto intelectual, admite Victor. Aconteceu quando foi assistir a um concerto da Sinfônica Jovem do Chile. Entrou no interior do teatro pela parte de trás do palco, onde normalmente está localizada a percussão. Isso não o permitiu ver a expressão do maestro imediatamente.

A orquestra interpretava o momento mais dramático do 3º movimento da 7º sinfonia de Bethoven, um “fortíssimo”, marcado pela vigorosa atuação do trompete. Victor contornou o palco e, de frente para o maestro, finalmente, sentiu-se ficar sem ar, inebriado com a exuberante expressividade do regente, que reunia em seus gestos e em suas expressões faciais todas a sensações mais enérgicas da sinfonia. “Naquele momento, pensei: eu quero ser o fio condutor dessa energia, eu quero ser maestro”. 

Os estudos, dali em diante, seriam direcionados para essa escolha

No Chile, Victor trabalhou por um tempo à frente de orquestras formadas apenas por jovens, e não orquestras profissionais. Por um tempo, acreditou que fosse esse o melhor caminho, pois via-se com a oportunidade de influenciar as vidas daqueles jovens. No entanto, mais tarde, repensou: “Meu trabalho poderia influenciar somente esses jovens. Con la orquestra profissional, poderia influenciar el sistema”. Dessa forma, percebeu que, como maestro, era também ator, um ator social, personagem de uma peça que tem mais chances de ter um final feliz, graças à sua atuação. 

Em 2006, Victor passou a integrar a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), uma das maiores Sinfônicas da América Latina, como regente assistente. Entre 2006 e 2008, ainda com a OSESP, esteve no tradicional Festival de Inverno de Campos do Jordão, onde assistiu pela primeira vez à Orquestra Sinfônica Municipal de Campinas, sem imaginar, nem por um breve acorde, a importância que ela teria para sua história.

Depois de um período como regente principal da Sinfônica do SODRE, a Orquestra Nacional do Uruguai e de um ano viajando com a Companhia Brasileira de Ópera, regeu como maestro convidado a Orquestra de Campinas. Em 2011, finalmente, convidaram-no para estar à frente, como regente titular, da OSMC, uma das maiores orquestras do Estado. A estreia foi no concerto de natal daquele ano, apresentação tradicional em Campinas.

Após oito anos, Victor Hugo Toro é o regente a ficar mais tempo à frente da OSMC depois de Benito Juarez 

O antigo maestro, reconhece, conferiu uma identidade à orquestra que ecoa ainda hoje. Assim como seu antecessor, Victor sabe que sua atuação como maestro e como personagem da história da orquestra desperta as mais variadas impressões. “Yo tenho certeza que há músicos na orquestra de Campinas que gostam de meu trabalho. Y Yo tenho certeza que há músicos na Orquestra de Campinas que não gostam de meu trabalho”. Isso faz parte, afinal, de ser um personagem. Personagens despertam julgamentos, impressões.

E, como maestro, Victor é também personagem. Um de seus maiores desafios é descobrir onde termina o maestro, onde começa o Victor Hugo Toro, aquele com quem este personagem fica sozinho além dos palcos.

Como maestro, Victor ainda utiliza de sua atuação cênica. À frente da orquestra, seu gestual traduz, de forma suave, dramática, triste, alegre, angustiada ou intensa a história contada pelos compositores, que não deixa de ser uma peça de teatro interpretada ao público, não com falas, mas com notas e acordes. E o maestro é um dos atores do elenco.

Mesmo assim, toda semana, ele sofre ao encontrar a melhor maneira de transmitir a mensagem à orquestra, ao público e à sociedade para quem acredita ser tão necessário enquanto agente de transformação, enquanto alguém capaz de trazer felicidade por meio da arte. Ainda assim, ele se pergunta por que escolheu ser maestro. A resposta, no entanto, é dada a cada semana, a cada sofrimento, a cada concerto, a cada aplauso.

O maestro conclui o clímax da peça, vira-se para o público, agradecendo. Os aplausos preenchem o teatro.

Colaboração: Jéssica Moraes e Graziele Souza
Texto escrito para o projeto experimental “Oboé: por dentro da Orquestra Sinfônica de Campinas”, uma reportagem transmídia realizada para a conclusão do curso de Jornalismo da PUC-Campinas.

Escrito por Nathália Galvão
23 de abril de 2020 às 22h12

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